quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Míriam, a Enviada do Céu



O dia tinha amanhecido enevoado. Cláudia caminhava em companhia de Filipa, a sua melhor amiga em direcção à escola, enquanto conversavam animadamente sobre uma das suas séries preferidas de televisão. De quando em quando, Cláudia alongava a vista pelos céus da cidade onde morava, pois gostava imenso de ver as gaivotas a planarem imponentes bem lá no alto dos ares.
Claro que os sons emitidos por elas não a deixavam indiferente e muitas vezes, ficava a pensar para si mesma: “ai, como eu gostava de poder ser amiga de uma gaivota..., oh, que bom havia de ser se pudesse conversar com ela sobre os segredos dos mares e dos ares, partilharmos coisas que seriam só nossas e me deixasse fazer-lhe muitas festinhas, pelas suas lindas penas longas e delicadas”! Noutras alturas, punha-se a tentar imaginar quais os sítios por onde elas voariam para além daquela cidade e como seriam as outras paragens, gentes e culturas por si conhecidas. Será que falavam com muitos marinheiros? E se isso acontecesse, sobre que género de histórias e aventuras conversariam? E os pescadores, eram amigos delas e de vez em quando atiravam-lhes um ou dois peixinhos com generosidade, ou pelo contrário, assim que as viam logo tratavam cheios de avareza, de as enchotar dali?
Ora numa das praças por onde as pequenas costumavam passar quase todos os dias, haviam alguns bancos de jardim de madeira e uma série de árvores muito altas que na Primavera, se cobriam de lindas flores coloridas de mil tons, formas e feitios que espalhavam em seu redor fragâncias maravilhosas. A delimitar certas partes dessa praça, existiam também, uns belos canteiros com pequenas florinhas de espécies variadas, o que tornava aquele lugar um sítio ainda mais calmo e agradável. Mas, aquilo de que ambas realmente mais gostavam, era de verem com bastante frequência, avós que por lá passeavam com os seus netinhos e netinhas pela mão e muitas pombinhas que comiam milho que tanto miúdos como graúdos, lhes atiravam às mãos-cheias para o chão. Outras vezes, eram casais de namorados que enquanto conversavam calmamente sentados nos bancos, chamavam as pombinhas e lhes estendiam a mão em concha, a abarrotar de grãos-de-milho acabadinhos de sair do saco.
Certa tarde porém, quando regressava da escola, Cláudia reparou numa coisa que ao princípio lhe pareceu um pouco estranha. Por isso, parou por uns minutos, a olhar cheia de curiosidade, para uma gaivota que, juntamente com as pombas, debicava tranquilamente grãos-de-milho e bocadinhos de pão espalhados pelo chão.
Durante algum tempo deixou-se ficar por ali, a observar muito interessada a maneira como a gaivota se comportava. Na verdade, ela sentia uma profunda admiração por elas e ao olhar para aquela imagem tão bonita, logo lhe veio ao pensamento a ideia de como adoraria poder um dia, tornar-se amiga de uma delas.
Como também gostava imenso de deitar milho às pombinhas, tirou a mochila das costas e pôs-se a olhar para o seu interior. Em poucos segundos viu o que queria. Tirou prontamente um pequeno saquinho de tecido florido onde costumava levar o lanche para a escola e reparou que no fundo dele, ainda haviam num pequeno saco de plástico transparente que ali guardava, alguns grãos-de-milho, embora já não fossem lá muitos.
Depois, resolveu sentar-se um bocadinho num dos bancos ali próximos e a seguir, tentou arranjar uma maneira de atrair como podia a atenção da gaivota. Ao princípio, a bonita ave parecia nem reparar nela e na maneira insistente como a chamava, mas aos poucos, ergueu a cabeça e olhou em sua direcção. Alguns segundos depois, muito de mansinho, pata-ante-pata, assim como quem está a ganhar confiança, lá se foi aproximando devagarinho da mão que Cláudia lhe estendia , repleta de doirados grãozinhos.
Quando a ave chegou muito pertinho dela, por instantes a menina susteve um pouco a respiração e com o coração a bater-lhe com força dentro do peito, pensou: “ena, que grande bico que ela tem. E se me dá uma bicada ao pegar nos grãos-de-milho?” Mas ganhou coragem, manteve-se firme e não retirou rapidamente a mão, nem atirou com os grãos-de-milho para longe para se afastar, pois isso seria desperdiçar uma oportunidade única de realizar um dos seus grandes desejos...
A surpresa de Cláudia não poderia ter sido maior. A gaivota era de uma ternura encantadora e aproximando o bico da sua mão, pegava devagarinho em três ou quatro grãozinhos de cada vez, mastigava-os, engolia-os e a seguir repetia a operação. A menina olhava-a encantada e aos poucos foi-se sentindo cada vez mais confiante. Por isso, estendeu devagarinho a outra mão e passou-a muito ao de leve pelas penas branco-acinzentadas do seu dorso.
Quando a mão da menina ficou vazia, a gaivota olhou-a ternamente nos olhos assim como se quisesse dizer-lhe obrigada, aceitou uma última festinha e depois caminhou para um sítio um pouco mais afastado. A seguir, estendeu as suas asas portentosas, agitou-as com a força necessária e ergueu-se rapidamente no céu.
Desejosa de saber o que ia acontecer, Cláudia seguiu-a com o olhar e viu-a dirigir-se para o beiral de uma casa que ficava ali perto. Depois de lá se ter instalado confortavelmente, a ave olhou novamente para a menina e agitou suavemente as suas asas imponentes. Sem saber muito bem porquê, Cláudia levantou a mão direita e fez-lhe um aceno de despedida. Depois, com muita calma e o coração a transbordar-lhe de alegria, guardou novamente os sacos na mochila, fechou-a, levantou-se e retomou calmamente o caminho de casa.
Cláudia mal pôde esperar pela manhã seguinte, para contar a Filipa, a sua aventura da tarde anterior e assim que puseram os pés no passeio da praça, logo começaram as duas a olharem atentamente para o beiral de uma certa casa, em busca de uma gaivota conhecida. Mas, para grande tristeza de ambas, àquela hora da manhã, ela não andava por ali… Talvez não tivesse de levantar-se cedo como elas ou então, poderia ter ido até perto dos barcos de pesca, para ver se conseguia alguma coisa fresquinha para o pequeno-almoço daquele dia.
Contudo, nessa tarde ao regressarem da escola, as pequenas tiveram uma agradável surpresa. Tal como havia acontecido no dia anterior, a gaivota lá estava novamente, no meio de muitas pombinhas que arrulhavam calmamente, enquanto iam debicando aqui, ali e além, grãozinhos-de-milho e bocadinhos de pão espalhados pelo chão. Assim que se aproximaram daquele local, Cláudia reconheceu de imediato a gaivota que tinha alimentado antes. Por isso, procurou um banco ali pertinho, sentou-se com calma e depois abriu a mochila como tinha feito na primeira vez. Filipa seguiu-lhe o exemplo e abriu também a sua mochila, para ver se ainda lhe tinha sobrado alguma coisa do lanche.
Entretanto, a julgar pela maneira como logo aos primeiros chamamentos, a ave olhou na direcção das pequenas e principalmente para Cláudia, ela depressa percebeu que a sua nova protegida a tinha reconhecido também. Por essa razão, dessa vez, a ave não demorou muito a ir ao encontro dela!
A menina ficou tão contente, que num ápice, retirou do fundo da mochila uma surpresa que tinha trazido para ela. Assim, perante o olhar atento da gaivota e de Filipa, Cláudia pegou num pequeno embrulho feito com papel de chumbo e desdobrou-o. Depois, estendeu à sua nova amiga uma sanduíche de atum muito fresquinha, que ela a julgar pelo seu ar, comeu com imensa satisfação!
Na manhã seguinte quando passaram pela praça, mal olharam para o beiral da casa onde a gaivota tinha ido pousar da primeira vez ao despedir-se de Cláudia, logo a viram sem nenhuma dificuldade. Mas a ave também estava muito atenta, pois ao reparar que as pequenas olhavam para ela, apressou-se a emitir uns sonoros huá, huá, huá, que não passavam despercebidos a ninguém! Aliás, se fosse fácil compreender o pensamento de uma gaivota, quase poderia dizer-se que ela já estava no seu posto de vigia, muito atenta para ver quando as pequenas por ali passariam e que ao avistá-las, as saudou com um amistoso e expressivo bom-dia!
Mal elas se aproximaram dessa casa, repararam que a ave estendeu as suas asas e levantou voo. Pensando que se ia embora, as pequenas retomaram o caminho da escola, um tanto desiludidas! Mas, qual não foi o seu espanto quando alguns passos mais adiante, viram que a sua nova amiga as acompanhava sempre muito atenta, bem lá no alto dos céus!
Quando chegaram ao portão da escola, acenaram-lhe ambas de mãos bem erguidas no ar. A gaivota fez então um grande círculo no alto do céu e depois de emitir uns quantos huá, huá, huá de despedida, foi procurar um bom local para a sua aterrisagem. E, para grande alegria de ambas, perceberam que ela o tinha descoberto, numa das torres muito altas de uma igreja que ficava ali perto.
À saída das aulas, depois de terem percorrido uns quantos metros, as meninas passaram perto da igreja e ao olharem para uma certa torre, avistaram de imediato, a sua nova companheira das alturas. E, quando chegaram ao banquinho de jardim da praça, logo a gaivota se apressou a descer em voo planado lá do alto e a aterrar muito pertinho das duas meninas. A seguir, ecebeu de presente, duas suculentas e fresquinhas sanduíches de atum!
As semanas foram-se passando e a amizade foi crescendo entre as três amigas. Todos os dias, a gaivota as acompanhava sempre na ida e no regresso da escola. Mas, numa tarde em que ambas regressavam a casa muito satisfeitas, algo de imprevisto aconteceu!
Ao passarem numa rua menos movimentada, um grupo de seis rapazes mais velhos aproximou-se das pequenas, rodeou-as e depois exigiu-lhes que lhes entregassem os telemóveis, as carteiras e os relógios. Entre aflitas e desesperadas começaram ambas a gritar por socorro. Foi quando um dos rapazes tapou a boca de Cláudia e lhe deu um valente puxão de cabelos, enquanto lhe dizia:
- Cala-te sua grande estúpida, ou queres apanhar a sério no focinho?
Entretanto a sorte de Filipa também não era melhor, pois um dos outros do grupo com mau aspecto, apontou-lhe uma faca e enquanto lhe apertava o braço com força, recomendou-lhe que entregasse tudo sem dar um pio...
Banhada em lágrimas Cláudia entregou os seus pertences e Filipa fez o mesmo. Mas, quando o grupo já se preparava para se afastar dali, algo de surpreendente para eles sucedeu. De repente, surgiu vinda lá do alto dos céus, uma gaivota que soltando uns huá, huá, huá assustadores, mergulhou sobre eles em voo picado e que se atirou com bicadas impiedosas ao rapaz que tinha puxado os cabelos de Cláudia. A seguir, ainda ele não estava refeito do susto, nem das dores e já a imponente ave investia com igual fúria, no outro que tinha maltratado à Filipa.
Com a determinação de um general que quer preservar a vida dos seus homens, ergueu-se novamente no ar, ganhou altura e depois procedeu a um segundo ataque fulminante. Dessa vez, atingiu um terceiro que estava boquiaberto de pasmo com tudo aquilo e depois dirigiu-se veloz como uma flecha na direcção do quarto. Os outros dois não quiseram saber de mais nada.
Cláudia e Filipa perceberam logo o que estava a passar-se e sentiram-se muito felizes, por a sua amiga as ter defendido naquele momento difícil.
Quanto aos jovens malfeitores, ffugiram dali o mais depressa que as pernas lhes permitiram, pois com os braços e as costas em sangue, completamente apavorados, atiraram com tudo para o chão e nem quiseram saber de mais nada! Mas isso num primeiro momento não lhes serviu de muito, porque depois daquela gaivota vieram outras e os gritos deles ainda se ouviam claramente, apesar de já estarem bem afastados daquele local...

Passado um bocadinho, a inteligente ave foi ter com as duas meninas ao ponto de encontro habitual. Mas dessa vez, depois de comer as suas sanduíches, teve direito a um tratamento especial.
Cláudia olhou-a cheia de gratidão e pegou-lhe ao colo com muito carinho. Filipa por sua vez, também a cobria de atenções e mimos.
Decidiram então ambas de comum acordo, que deviam dar um nome à sua corajosa amiga e protectora. A escolha não era nada fácil, mas depois de umas quantas tentativas chegaram a um acordo.
Como a gaivota esperava sempre por elas na torre da igreja que ficava perto lá da escola, resolveram chamar-lhe Miriam, já que esse era o nome de Nossa Senhora, a protectora das crianças como lhes tinha dito a sua catequista.
Fitando-a então com imensa ternura, enquanto lhe acariciava as penas aveludadas, Cláudia disse à valente gaivota:
- De hoje em diante, nossa querida amiga, vais chamar-te Míriam. Sim, tu serás sempre para nós, a nossa doce e corajosa Miriam, a enviada do céu!


Sónia Queirós