quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Um Sonho de Carnaval!








Havia já alguns dias, que Andreia contemplava com um lindo brilho no olhar, a montra da papelaria que ficava perto de sua casa, pois como o Carnaval já se aproximava, a Dona Gertrudes tinha-a enfeitado com muitos pacotes de fitas coloridas, máscaras das formas mais diversas, pistolas de água, varinhas de condão, e de todo um mundo de mil coisas, que tanto faziam sonhar a sua imaginação.
Cada vez que chegava àquele local, não podia deixar de reduzir o passo e quase sempre acabava por ali parar, nem que fosse só por um bocadinho. De entre tudo o que lá havia, o que mais admirava era uma belíssima fantasia de rainha, onde nem sequer faltavam o ceptro e a magnífica coroa dourada!
Ai, como o coração de Andreia lhe batia com força dentro do peito, ao imaginar que, se a mãe pudesse, talvez lhe oferecesse aquela fantasia para usar no Carnaval, como ela tanto gostaria!
Claro que a menina bem sabia que as coisas lá em casa não andavam muito bem no que dizia respeito às finanças da família, mas ainda assim, resolveu tentar falar com a mãe para ver o que ela iria dizer ao seu pedido.
Nesse dia à noite, quando a mãe voltou do trabalho, Andreia foi dar-lhe um beijinho como de costume e preparou-se para a ajudar a fazer o jantar para o pai e para o irmão mais velho, que daí a pouco tempo deveriam estar a chegar também.
Enquanto ia descascando umas batatas e ralando umas cenouras para a sopa, conseguiu ganhar coragem e falou à mãe sobre a linda fantasia que estava à venda na papelaria da Dona Gertrudes e de que ela tanto gostava.
A mãe, como sempre, escutou-a com toda a atenção e carinho e depois disse com um tom de certa tristeza na voz:
- Sabes minha filha, as coisas cá em casa não vão lá muito bem... O patrão do paizinho anda um bocado aflito com uns problemas que têm acontecido lá na empresa, mas em todo o caso, eu vou falar com o pai e depois tu pedes-lhe também, e se ele concordar... se a Dona gertrudes nos fizer uma atençãozinha no preço dessa fantasia, vamos lá a ver o que se pode arranjar...
Andreia ficou radiante com a resposta da mãe, pois bem sabia, o quanto ela se esforçava por tentar agradar a todos os membros da família e o quanto ela gostava de ver toda a gente satisfeita. Foi por essa razão que, mesmo ainda sem ela lhe ter dado a tão desejada prenda, a menina bateu as palmas de contente e deu um beijo no rosto da mãe em sinal de agradecimento.
Quando daí a algum tempo chegaram o pai e o irmão, Andreia tratou de pôr a mesa e ao jantar, apresentou ao pai já com um pouco mais de coragem e entusiasmo, o mesmo pedido que um bocadinho antes tinha feito à mãe.
Este olhou para a mãe que lhe acenou afirmativamente com a cabeça, e disse então à filhinha:
- Olha Andreia, como tu te tens portado bem e és aplicada na escola, no próximo Sábado a mãezinha vai então contigo à papelaria para saber o preço dessa fantasia e depois, se não fôr muito cara, ela compra-a para ti, está bem?
- Claro que sim e muito obrigada paizinho. A resposta da menina, o brilho do seu olhar e o luminoso sorriso que lhe aflorou aos lábios, evidenciavam claramente a imensa satisfação que sentia naquele momento!
Nessa noite, depois de deitar-se e adormecer teve um sonho muito bonito, no qual andou ainda a pensar durante os dias que faltavam até chegar o tão ansiado dia de Carnaval.
De repente, Andreia viu-se a passear num bosque muito frondoso e soalheiro, onde inúmeros passarinhos cantavam cheios de entusiasmo, deliciosas melodias. Ao longe, Andreia ouviu o som de águas correndo em grande quantidade, como se estivesse perto de um rio. Caminhou então em direcção ao lugar de onde vinha o som e depois de dar alguns passos nesse sentido, avistou ao longe uma clareira e apercebeu-se de que devia ali estar uma grande fonte de água límpida e cristalina, ou talvez fosse uma queda-de-água onde as águas corressem velozmente...
Como sentia grande curiosidade em ver o que era aquilo e o que estaria naquele local, apressou o passo para chegar mais depressa ao lugar que tanto lhe chamava a atenção. Mal entrou na clareira os seus olhos foram inundados de luz, de uma luz forte e brilhante, que ao princípio lhe fez pestanejar os olhos durante uns segundos. Depois acostumou-se e viu então uma linda fonte de água pura e cristalina, da qual brotavam sete jorros de água, que impelidos pelo vento suave, ora se entrechocavam ora caíam em direcções opostas numa grande superfície branca e ligeiramente ondulada.
Enquanto olhava fascinada para aquele maravilhoso cenário, apercebeu-se de súbito, de uma espécie de som de relâmpago que se fez ouvir por todo o local. Fitou o céu de imediato e, verificou então com espanto, que aquele estava límpido e sem nuvem alguma.
Observou então com mais atenção e correndo os olhos por todo o perímetro da fonte, avistou uma pequena capelinha, de onde uma linda Senhora a fitava cheia de terna doçura no olhar. Por alguma razão que não sabia explicar,  a menina sentiu-se logo presa pelo encanto daquela Senhora que lhe sorria com maternal bondade.
Adriana ouviu então uma voz muito suave que lhe disse:
- Minha filha querida, conduzi-te até aqui, porque há uma coisa muito importante que preciso de dizer-te e da qual jamais deves esquecer-te.
Adriana respondeu então numa voz cheia de solícita humildade:
- Pois não minha senhora, em que posso ser-lhe útil?
A amável Senhora falou então da seguinte maneira:
- Minha Filha, sei que queres muito ter aquela fantasia de rainha que viste na montra da papelaria, e desde já te digo que os teus pais vão poder oferecer-ta. Mas olha, procura sempre lembrar-te que qualquer rainha da Terra, deve procurar criar e desenvolver continuamente entre os seus súbditos, três valores fundamentais: em primeiro lugar, o amor a Deus e ao Próximo como a si mesmos, acima de todas as coisas; em seguida, esforçar-se por gerar e apoiar as condições de respeito, justiça e igualdade para que floresçam sempre a paz e a concórdia entre os Homens, como a mais bela de todas as flores; por fim, é fundamental que jamais se deixe vencer pelas tentações da vaidade, do egoísmo, da inveja e da maldade para não desiludir os seus súbditos e ser verdadeiramente amada por todos. Só agindo desse modo, ela reinará sempre no coração deles, rodeada de carinhosa ternura, estima e dignidade e poderá contar com o esforço e coragem de muitos para promoverem o desenvolvimento do reino que lhe foi confiado.
Adriana despertou então, pois sentiu que a mãe lhe afagava ternamente os cabelos e que já a chamava para que se arranjasse para ir para a escola. Mas, guardou bem no fundo do seu coração, as lindas palavras daquela Senhora, que a julgar pela sua Excelsa Beleza e Encantadora figura não podia ser outra senão a Rainha dos Anjos e dos Santos, de quem tantas vezes tinha ouvido falar nas suas aulas de catequese e que em sonhos a tinha vindo visitar e tão sabiamente aconselhar!



Sónia Queirós.

domingo, 21 de agosto de 2011

O Sonho Secreto!!






O ambiente era de grande festa e alegria. Sentado numa das cadeiras do anfiteatro do novo estabelecimento de ensino onde era professor, junto de outros colegas também docentes, Louis ouvia com imensa satisfação as ruidosas chuvas de aplausos que ecoavam por toda a sala, aquando do fim de cada número artístico apresentado. Num envolvente clima de cor e magia, professores e alunos colaboravam para mostrar perante um público atento e curioso, as maravilhas que o talento, a boa-vontade e o empenho comum conseguem alcançar.
À medida que os ponteiros do relógio iam avançando no seu caminho, traziam consigo momentos de poesia, de música, de teatro e de ginástica realizados na sua grande maioria, por crianças e jovens cegos ou com baixa visão. De facto, a alegria, o talento e a capacidade de todos aqueles artistas desconhecidos, eram nada mais, nada menos do que surpreendentes!
Como era natural, tudo havia sido preparado com todo o esmero e atenção até ao mais pequeno pormenor! No ar sentia-se um grande desejo de que nada falhasse, pois ali estavam inúmeras horas de ensaios e de testes, de ajustes e reajustes. Além disso, naquela sessão solene de inauguração, encontravam-se presentes algumas das figuras mais ilustres da sociedade francesa, como era o caso de políticos, diplomatas, escritores e jornalistas, médicos e arquitectos.
A festa estava a correr lindamente e tudo a acontecer segundo os planos previstos, o que deixava o professor Louis muitíssimo satisfeito. No entanto, desde o momento em que um jovem músico que era seu aluno, começou a tocar o piano, algo de estranho sucedeu com ele. Sem que soubesse muito bem porquê, logo ao soar das primeiras notas da melodia, Louis sentiu-se transportado para muito longe daquele sítio.
Subitamente, reviu-se como criança e lembrou-se de alguns dos momentos mais dolorosos pelos quais havia passado na infância quando devido a um acidente, tinha perdido a visão. Com o peito apertado, recordou por instantes, a maneira como os pais tinham ficado tristes naqueles momentos de incerteza e angústia!
Contudo, para grande alívio seu, essas lembranças tristes do passado, foram rapidamente substituídas pelas da altura em que teve a alegria de conhecer o abade Paluy, na primeira vez em que ele foi a sua casa. Vieram-lhe então à memória, as muitas coisas que aprendeu com ele e os belos passeios que tantas vezes tinham dado juntos ao ar livre, pelas florestas e campos da aldeia! Mas, sobretudo, recordou com sincero apreço, o momento de grande felicidade que sentiu, quando ele o informou de que tinha conseguido convencer o novo professor da escola primária da aldeia a aceitá-lo como aluno na sua classe. Que maravilha!
Sempre que por alguma razão retornava a esses momentos felizes, até lhe parecia que ouvia novamente, as palavras de incentivo que os pais então lhe haviam dito:
- Louis, agora vais poder aprender várias coisas novas que hão-de ser muito importantes para o teu futuro. Temos a certeza de que és um menino muito inteligente e com capacidade, por isso certamente vais conseguir acompanhar as lições do senhor professor e fazer todos os exercícios que ele mandar.
Como o futuro mais tarde veio a confirmar, os pais tinham toda a razão em falar-lhe daquela maneira tão confiante, pois com o professor Antoine Becheret teve aulas sobre as mais variadas matérias e concluiu com óptimos resultados a frequência da escola primária. Na verdade, Louis sentia uma imensa gratidão por aquele homem que marcara para sempre a sua vida, ao mostrar que acreditava na importância de ensinar um menino cego, o que naquela altura era uma coisa bastante invulgar. Aliás, ainda guardava bem vivas no pensamento, as palavras que o senhor professor tinha dirigido aos meninos da classe, no seu primeiro dia de aulas:
- Não sei se vocês já se conhecem todos uns aos outros. Temos aqui connosco, um aluno que não vê e que por essa razão, vai precisar de um acompanhamento diferente do vosso. Pela minha parte, eu ficarei muito contente se todos os colegas colaborarem com o Louis, para que ele também aprenda as matérias leccionadas tal e qual como vocês. E foi o que de facto aconteceu!
Entretanto, o piano parou de tocar e o som dos aplausos encheu por completo o anfiteatro, o que fez com que o professor Louis voltasse ao momento presente. Nos seus lábios surgiu um bonito sorriso, mas lá no fundo do seu coração, nem ele sabia muito bem dizer se era devido ao êxito retumbante ali alcançado pelo seu aluno, ou se era de reconhecimento por tudo o que tinha aprendido com o seu saudoso mestre-escola.
A seguir, foi a vez de um dos alunos de um dos seus grandes amigos do Instituto, declamar uma poesia que ele próprio fizera, acerca do valor da fraternidade e da amizade. Mal começou a ouvir as primeiras palavras que melodiosamente saíam dos lábios do jovem poeta, de novo o pensamento se lhe “escapou” para bem longe dali!
Na segunda vez, as lembranças “levaram-no até um dia já muito distante, em que foi ter com o seu amigo Palluy à sacristia da igreja de Saint-Pierre, para falar-lhe sobre as suas angústias e preocupações. Contou-lhe que se sentia muito triste por não saber como iria ser o seu futuro, uma vez que não poderia aprender a profissão de correeiro do pai.
Como sempre acontecia, o abade Palluy ouviu-o com toda a atenção. A seguir, prometeu-lhe que o iria ajudar a encontrar uma maneira para resolverem os problemas dele, tarefa na qual se empenhou de alma e coração.
Alguns meses depois daquela conversa, para grande surpresa do menino, numa certa tarde pouco depois do almoço, o abade Palluy chegou a correr eufórico à arrecadação onde ele estava a cortar lenha, pois trazia uma notícia absolutamente maravilhosa para dar-lhe!
- Louis, Louis, disse-lhe ele cheio de alegria logo que o viu, tenho novidades excelentes para ti! Já arranjei uma solução para o teu problema!
- Ah, sim senhor abade e como foi que fez isso, perguntou Louis enquanto lhe apertava amavelmente a mão.
- Depois da conversa que tivemos os dois na sacristia, falei com o professor Antoine Becheret sobre as questões que me tinhas apresentado e ele informou-me de que sabia da existência de uma escola criada para crianças cegas em Paris. A seguir, fui ter com uma pessoa muito importante daqui da aldeia, o marquês “d*Orvillier”, que me disse que também já tinha ouvido falar dessa escola e consegui que por intermédio dele, tu fosses admitido como aluno no Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, o primeiro estabelecimento de ensino do mundo para cegos!
Ao princípio, Louis ficou boquiaberto com aquilo que ouvia da boca do seu amigo Palluy. Mas aos poucos, o seu espanto inicial foi sendo substituído por uma imensa onda de alegria interior. Sem que ele o esperasse, o abade Palluy cobriu dois troncos de madeira com uns quantos sacos de sarapilheira para lhes servirem de almofadas e, depois de estarem ambos confortavelmente instalados nas suas “poltronas improvisadas”, começou a ler-lhe uma carta recém-chegada vinda de Paris.
Quando o abade Palluy terminou a sua leitura, dobrou cuidadosamente as folhas e meteu-as no envelope, que em seguida colocou no bolso e depois disse ao pequeno:
- Agora, vamos ambos contar estas notícias maravilhosas aos teus pais, explicar-lhes que essa escola tem como principal objectivo dar uma boa instrução a crianças cegas e proporcionar-lhes uma actividade profissional útil. Ah, e pedir-lhes a sua autorização para que possas ir realmente frequentá-la, pois isso vai ser óptimo para ti!
Quando os pais de Louis souberam que o filho tinha ganho uma bolsa para ir frequentar um estabelecimento de ensino tão importante como aquele, ficaram radiantes. E, a alegria deles tornou-se ainda maior quando o sacerdote Palluy os informou de que no Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, Louis iria ter disciplinas para desenvolver a actividade intelectual, musical e profissional.
Depois Louis teve por momentos, a sensação de sentir novamente o abraço apertado que lhe havia dado o seu amigo incondicional, quando a meio dessa tarde se despediram já na porta da rua, enquanto lhe desejava as maiores felicidades para o novo desafio que o aguardava e lhe prometia que todos os dias, rezaria por ele junto do Santíssimo Sacramento.
Contudo, como imprevistos acontecem a qualquer pessoa e principalmente às mais distraídas, a certa altura, um dos colegas de Louis que se havia ausentado durante algum tempo da festa, interrompeu-lhe o fio dos pensamentos, ao perguntar-lhe se os alunos já tinham começado a ler as composições escritas por eles acerca do Instituto. Mas, ele estava tão entretido com as suas lembranças da infância, que lhe respondeu muito naturalmente:
- Não sei senhor abade, realmente não prestei lá grande atenção a esse facto, mas espere um bocadinho que já veremos...
O colega olhou-o espantado e pensou por momentos: Senhor abade?... Ah, isto não é normal no Louis, de certeza que está a confundir-me com outra pessoa qualquer... E, pelo sim pelo não, resolveu fazer a pergunta a um outro colega menos distraído, para evitar mais situações embaraçosas...
Entretanto, poucos segundos após este incidente, Louis apercebeu-se do seu engano e apressou-se a pedir desculpas ao colega pelo lapso cometido. Felizmente para ele, alguns minutos depois, foi anunciada a leitura das tais redacções feitas por alunos do Instituto.
A primeira aluna a subir ao palco para ler a sua composição foi Simone, uma bonita menina de longos cabelos negros ondulados. Logo desde as primeiras palavras que ouviu, Louis sentiu-se profundamente identificado com as ideias por ela ali expostas. De repente, começou a rever-se na altura em que com dez anos apenas, tinha entrado para aquele Instituto, situado na Rua “Saint-Victor, nº 68”, que naquele tempo era dirigido pelo Dr. “Sébastien Guillié”.
Avançando de lembrança em lembrança, recordou-se então de que aquele havia sido o momento em que pela primeira vez na vida, tinha tido que ficar a viver afastado da família de quem tanto gostava, rodeado por pessoas desconhecidas e num sítio totalmente novo para ele. É certo que de vez em quando, recebia cartas que lhe eram enviadas tanto pela família como por amigos, o que lhe enchia o coração de alegria e o ajudava a ultrapassar os momentos de solidão.
Mas ainda assim, nos primeiros meses as coisas não haviam sido nada fáceis e tinha sido só com o passar dos dias que se havia indo acostumado à companhia dos outros meninos e meninas que também ali estudavam... É que, o Instituto ficava muito longe de Coupvray, a aldeia onde ele nascera e por isso, só podia ir a casa na altura das férias de Natal e de Verão.
Simone prosseguia a leitura da sua composição, contando em voz suave e clara: “nas primeiras semanas depois da minha entrada no Instituto, existiram dias em que senti tantas saudades de casa que em certos momentos, as lágrimas se me tornaram difíceis de segurar. Nessas ocasiões de tristeza, se tinha oportunidade para isso, refugiava-me durante um bocadinho no dormitório e, com a minha boneca querida bem apertada contra o coração, pensava na doce ternura das palavras da minha mãe adorada!”
Confortavelmente sentado na sua cadeira da plateia, Louis ia pensando de si para consigo: Meu Deus, como o caso dela é parecido com o meu! Quantas vezes eu mesmo, chorei com o meu estojo de letras em cabedal feitas pelo meu pai, estreitado contra o peito, ao recordar as últimas palavras que ele me disse quando me deixou aqui em Paris:
- Meu filho, tens de ser forte pois espera-te uma etapa decisiva para o teu futuro! Aqui vais aprender muitas coisas novas que hão-de ser de grande utilidade para a tua vida! Mas, não te esqueças que todos gostamos imenso de ti e que estás sempre nos nossos corações! Boa sorte, meu querido filho e faz por seres um homem! Assim que chegarem as férias grandes, eu venho logo cá buscar-te para ires para junto de nós, está bem?...
Nos parágrafos seguintes do seu trabalho, Simone falava de maneira entusiasmada dos vários livros que haviam lá no Instituto, sobre assuntos muito variados, com as letras propositadamente feitas em alto relevo para serem sentidas pelos dedos. A seguir, explicava que essa tinha sido uma descoberta fantástica para ela, pois servindo-se do tacto, podia ler sozinha e à sua vontade acerca de todos os assuntos que quisesse!
Depois mencionava as aulas de música, de trabalhos manuais, os mapas feitos com materiais adequados para serem palpados, nos quais se podia identificar com todo o rigor, a localização dos rios, das montanhas e dos desertos em diferentes países.
Por fim, num último parágrafo breve, mas muito significativo, a menina agradecia ao fundador do Instituto, ao director, aos professores e aos seus benfeitores por lhe terem proporcionado a ela e a todos os outros alunos, oportunidades tão valiosas de adquirirem capacidades e talentos tão diversos.
Quando Simone acabou, uma imensa chuva de aplausos encheu por completo o salão nobre, o que fez com que o professor Louis “regressasse” novamente aquela celebração tão especial!
A festa prosseguiu com a a entrega das mençãos honrosas. A primeira pessoa a ser chamada ao palco pelo director do Instituto, o Dr. Dufau, para receber uma homenagem, foi um familiar directo do Dr. Valentin Hauy, que havia sido o nobre fundador do Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris em 1784.
A distinção seguinte, foi entregue a um senhor de aspecto muito elegante, de nome Charles Barbier de la Serre, que era um ex-capitão do exército francês e um dos grandes benfeitores do Instituto. Segundo o que o Sr. Director leu em voz alta, ele tinha inventado um método de leitura e escrita para comunicar com os seus homens quando estavam na frente de batalha, ao qual dera o nome de “escrita nocturna” ou Sonografia, formado por traços e pontos em relevo, que podiam ser lidos sem luz e com o auxílio dos dedos.
Entre o som dos aplausos que enchiam a sala e as palavras emocionadas de agradecimento do Sr. Capitão, Louis recordou por momentos, a alegria e o interesse com que os alunos do Instituto, tinham experimentado aquele método de comunicação tão inovador. Na verdade, quase todos haviam percebido que aquele sistema, tinha vantagens que o método dos caracteres em relevo usado regularmente lá na escola não reunia, uma vez que permitia tanto a leitura, como a escrita, o que era um avanço fabuloso!
Realmente, à medida que os anos de estudo no Instituto foram passando, Louis foi começando a aperceber-se de que os livros ali usados com letras em alto relevo, permitiam a leitura, mas não a escrita, o que era uma limitação muito séria. Em relação aos mapas de estudo e às pautas musicais indispensáveis para a execução correcta dos instrumentos tocados, o problema era o mesmo, porque com o método de escrita utilizado, os alunos podiam ler facilmente as notas musicais, mas se quisessem ser eles mesmos a compor as pautas das músicas que tocavam, isso era-lhes impossível.
Outra das dificuldades experimentadas, surgia quando eram ensinados a escrever pelo seu próprio punho o seu nome completo, as letras do alfabeto e o mais que necessitassem para redigirem, por exemplo, cartas aos amigos e à família, uma vez que depois do trabalho terminado, não tinham como verificar se tudo estava bem escrito ou se precisavam de corrigir alguma coisa.
Após ter compreendido tudo isso, aos poucos Louis começou a desenvolver no seu coração um sonho secreto: desejava ardentemente, criar um sistema de leitura e escrita que permitisse a qualquer pessoa cega, ler e escrever tudo aquilo de que necessitasse de maneira independente.
Contudo, como naquela altura não dispunha nem de conhecimentos, nem de meios que lhe permitissem realizar o seu plano, não lhe restava outra solução senão a de continuar a usar o método dos caracteres em alto relevo. Mas um dia, depois de ter tomado contacto com o sistema do Capitão Barbier, aos poucos começou a achar que a realização do seu sonho iria tornar-se possível!
Realmente, ao cabo de três anos de muito trabalho e afinco, depois de incontáveis tentativas de erros e acertos, pôde finalmente mostrar ao director do Instituto onde estudava, o Dr. Pignier, a sua invenção mais recente, à qual havia dado o nome de “Processo”.
Ora, estando o amável professor profundamente embrenhado nestas gloriosas lembranças da juventude, de repente e sem que nada lho fizesse prever, começou a ter a impressão de que ouvia o seu nome a ser chamado para ir ao palco. Apanhado pelo efeito de surpresa, ao princípio nem queria acreditar no que escutava.
Mas as dúvidas dissiparam-se, quando o seu amigo e colega muito querido Michel Martins, se aproximou dele e gentilmente se ofereceu para o conduzir até lá em segurança. Já com o pé no último degrau e com o som das palmas a ecoarem-lhe nos ouvidos, ainda se perguntava acerca das razões pelas quais alguém se teria lembrado dele naquela celebração tão especial...
Entretanto, num curto instante de tempo, tudo se tornou muito claro para o professor Louis! Logo que chegou junto da tribuna de honra, aproximou-se dele o chefe de ensino do Instituto, o senhor Joseph Guadet, que lhe apertou cordialmente a mão e o conduziu até uma cadeira onde se acomodou confortavelmente. Depois deu início à leitura de um discurso formal em sua honra, o que o fez sentir-se muito elogiado e que começava da maneira seguinte:
- Caros senhores e senhoras, permitam-me que lhes diga que Paris e Coupvray estão hoje de parabéns, pois é graças ao talento e génio criativo do professor Louis Braille, que se deve a invenção do sistema de escrita e leitura aqui utilizado por todos os participantes desta festa maravilhosa. É ele o responsável pela criação deste método de comunicação, simples e eficaz, formado por pontos em relevo e pensado propositadamente para ser usado por pessoas cegas, como agora viram acontecer. Por essa e por muitas outras razões, cumpre-me pois declarar perante Vossas Excelências, que o Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, ficará com uma eterna dívida de gratidão para com este bondoso e insigne representante da cultura e do povo francês.
Quando o senhor Joseph Guadet terminou a leitura do discurso proferido em homenagem ao Professor Louis Braille, ele agradeceu comovido, pela menção honrosa que publicamente acabava de ser-lhe entregue! De regresso ao seu lugar, entre ruidosos vivas e calorosos apertos de mão, tanto de colegas, como de alunos, ia pensando como tinha valido a pena trabalhar com persistência e afinco, na realização do seu sonho secreto!


terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vidas "Cãoprometidas"! 2ª parte

Continuação do post anterior.




O problema surgiu na altura em que arrumou os papéis dentro da mala, pois sem dar por isso, deixou esquecida em cima da secretária do gerente da imobiliária, a escritura que comprovava que ele era o dono da propriedade e da casa onde morava. Mas como era um homem pouco amigo de burocracias, logo que chegaram a casa, guardou a mala dos documentos no escritório e não pensou em mais nada do que tinham conversado com o Dr. Silvano naquela tarde.
Contudo alguns dias depois ao ler com atenção o conteúdo dos papeis que guardava na mala, verificou que lhe faltava a sua escritura. A aflição e ansiedade que de imediato se lhe instalaram na alma eram indizíveis!
- Meu Deus, mas aonde é que eu meti a porcaria da escritura? Oh, que sorte maldita a minha... Olha, o que me havia de acontecer! E agora, o que é que vou fazer para resolver esta chatice?
No meio do desespero e da aflição começou a atirar com tudo e acabou por perder de tal maneira a presença de espírito que entre rogos e pragas, foi sentar-se profundamente abatido no sofá.
Ao ouvir tal agitação dentro do escritório, Nancy veio logo a correr não se sabe de onde, na direcção do dono. Uma vez junto dele, colocou-lhe as patas dianteiras nos joelhos como sempre fazia em alturas de crise e olhou-o com a ternura habitual. Depois de o ter fitado durante alguns momentos enquanto abanava docemente a sua linda cauda, ele fez-lhe umas festinhas e disse-lhe:
- Não te preocupes Nancy, porque já estou a ficar mais calmo. Fica tranquila que está tudo bem... A seguir pensou melhor e corrigiu o que tinha dito antes.
- Sabes, quer dizer, dizia ele enquanto olhava para os papeis espalhados por todo o lado, não está nada bem, porque perdi um documento muito importante. Mas como não sei o que hei-de fazer para resolver o problema, continuou com a voz embargada pelas lágrimas…
Nancy não precisou de ouvir mais nada. Lambeu-lhe o rosto e as mãos ternamente e logo que o sentiu mais sossegado, tirou-lhe as patas dos joelhos e farejou longamente a mala e todos os papeis que por ali haviam completamente desordenados. No início “tomou conhecimento” dos documentos que se encontravam em cima do tampo da secretária e depois olhou atentamente para os que estavam no chão. A seguir, após ter reflectido durante uns momentos, olhou novamente para ele, foi até junto dele e agarrou-lhe a manga do polouver.
Ao princípio Toddy nem queria acreditar no comportamento de Nancy e, julgando que ela queria brincar para o distrair das suas aflições, exclamou com certa impaciência:
- Não Nancy, agora não vamos brincar! Já te disse que hoje estou muito preocupado, por isso se fazes favor, ficas aí quietinha… Dito isto, retirou-lhe a manga da boca, de maneira delicada mas firme.
Mas para grande surpresa dele, a inteligente pastora belga continuou a insistir decidida nos seus propósitos. Assim abocanhou-lhe novamente a manga e começou a puxá-lo para que se erguesse do sofá.
Após a ter fitado longamente durante algum tempo, começou a pensar de si para consigo: “será que ela quer que eu a acompanhe a algum lado?” “O que quererá ela dizer-me ao agir desta maneira tão estranha?...”
Habituado como estava, a confiar nas capacidades raras de compreensão de Nancy e também porque bem vistas as coisas, não tinha nada a perder em fazer o que ela queria, lá aceitou levantar-se e segui-la.
Em poucos minutos, Nancy percorreu o corredor central da casa e dirigiu-se para a porta da saída. Uma vez no exterior, caminhou sem hesitações para a porta da garagem e ladrou duas ou três vezes diante dela.
Absolutamente boquiaberto com o comportamento dela, Toddy perguntou-lhe:
- Queres que tire o carro, é isso?
A expressão viva no olhar de Nancy não deixava margem para dúvidas. Por isso, alguns momentos depois, já estavam ambos prestes a entrar para a rua que ficava em frente da casa onde moravam.
- E agora Nancy, vamos para a direita ou para a esquerda?
Nancy ladrou decidida duas vezes, o que queria dizer para a direita.
Sem mais hesitações Toddy ligou o pisca e quando chegou a sua vez, fez-se à estrada como a pastora belga recomendava. Por breves momentos, recordou-se das alturas em que treinavam os sinais de orientação e busca, num dos bosques próximos lá de casa.
Ao cabo de uns vinte minutos de latidos que indicavam ora para a direita, ora para a esquerda ou em frente, o perspicaz treinador começou a perceber a direcção que Nancy pretendia seguir. Alguns quilómetros mais adiante, perguntou-lhe numa voz um tanto surpreendida:
- Vamos à empresa imobiliária falar com o Dr. Silvano, é isso?
Após o ter fitado com sincera vivacidade, ladrou duas vezes e esticou-se na direcção do dono e lambeu-lhe o rosto como pôde, uma vez que o cinto de segurança que ele lhe tinha colocado logo que entraram no automóvel, lhe restringia bastante os movimentos.
- É isso Nancy, pode ser que tenhas razão! Se estiveres certa nas tuas intuições, dou-te o melhor presente da tua vida!
Quando parou o carro no parque da empresa, Toddy estava já absolutamente convencido de que era possível que o seu tão valioso documento lá tivesse ficado esquecido. Assim, ao cabo de alguns minutos de espera, estavam ambos novamente no escritório da firma, a conversar com o Dr. Silvano e Toddy informou-o dos motivos pelos quais ali se dirigiu. Mal ele acabou de falar, o Dr. Silvano disse-lhe com uma voz calma:
- Espere um minuto Sr. Toddy, porque realmente tenho uma ideia de ter visto essa escritura por aqui, mas creio que a minha secretária a encontrou e a guardou no cofre principal da firma. Só um bocadinho que eu venho já. Dito isto, ergueu-se prontamente e saiu do escritório.
Depois de uns dez minutos de espera que a Toddy mais pareceram dez horas, voltou com um ar sorridente que iluminava de forma indelével a sua fisionomia ainda jovem E exclamou:
- Ora pronto, é como eu lhe tinha dito. Aqui está a sua escritura senhor Toddy, disse ele assim que se sentou, estendendo-lhe logo o valiosíssimo documento. Peço-lhe imensa desculpa por não ter ligado logo para a sua casa a informá-lo de que a tinha deixado cá, mas só me apercebi disso no fim do trabalho quando fui colocar em ordem os papeis daquele dia. Além disso, como a Patrícia a guardou, não a voltei mais a ver e acabei por me esquecer também.
Toddy nem queria acreditar! Ali estava mesmo à frente dos seus olhos, a escritura que era tão importante para ele e da qual Nancy, (vá-se lá saber por que razões), realmente não se havia esquecido!
- Ah Dr. Silvano, não faz mal, fique tranquilo que eu compreendo perfeitamente como essas coisas são, disse delicadamente o treinador enquanto se preparava para erguer-se. Já de pé, estendeu-lhe a mão cordialmente. A seguir olhou para Nancy que ao vê-lo pôr-se de pé fez o mesmo e disse-lhe em tom afectuoso:
- Vamos Nancy, dá a pata ao Dr. Silvano, ordem a que ela obedeceu prontamente.
Com um sorriso nos lábios, o Dr. Silvano apertou-lhe delicadamente a pata dianteira direita, enquanto lhe fazia umas quantas carícias na cabeça e orelhas.
Quando saíram das instalações da empresa imobiliária, Toddy nem cabia em si de contente. De facto, essa foi mais uma das vezes em que as capacidades absolutamente raras da sua querida Nancy, lhe foram muitíssimo preciosas!
Radiante de satisfação, nessa tarde foram ambos passear no parque principal da cidade, onde Nancy pôde correr livremente por onde lhe apeteceu e no regresso a casa, comprou-lhe um sculento osso de búfalo que ela roeu com imenso agrado durante todo o caminho. Além disso, de vez em quando lembrava-se de quanto ela o tinha ajudado e como recompensa, fazia-lhe muitas festas e brincava com as suas orelhas macias.
Contudo, ao chegarem ao portão de casa algo de inesperado aconteceu. Toddy reparou num grande automóvel estacionado muito perto dele e, pensando que poderia ser um possível cliente, logo que o abriu fez sinal aos seus ocupantes para que o seguissem.
Sem que se soubesse muito bem porque razão, Nancy começou a ficar com o pêlo eriçado e parou logo de saborear o seu tão apetitoso petisco. Mal Toddy parou o carro junto da garagem, foi ao encontro deles o casal que há alguns meses atrás tinha querido adquirir Nancy.
Como era de esperar, a inteligente pastora reconheceu-os logo à entrada do portão e entre gemidos e rosnadelas, optou por se esconder por detrás das pernas do treinador.
Compreendendo perfeitamente os motivos de Nancy para se comportar daquela maneira, fez-lhe muitas festas para a tranquilizar. Depois, em tom de grande cordialidade, explicou ao casal que, por razões pessoais tinha mudado de ideias e que afinal já não iria vender aquela cadela.
Ao contrário do que ele desejava, eles não gostaram nada da ideia e ficaram tão furiosos que começaram a protestar. A certa altura, a discussão agravou-se de tal modo que o elemento masculino do casal tentou agredir Toddy com um soco na face. Nancy nem hesitou! De um salto, lançou-se-lhe com tal agilidade à mão erguida na direcção dele que o homem deu um terrível grito de dor.
- Calma Nancy, larga, larga, ordenou-lhe prontamente o treinador.
Nancy obedeceu, mas ficou a rosnar baixinho e não deixou de fitar o agressor um momento que fosse! Não confiava nada nele e bastava que fizesse um movimento em falso para que ela lhe mostrasse o quanto gostava de Toddy!
- Senhores, queiram por favor deixar a nossa casa imediatamente, pois como vêem não temos mais nada para conversar. Não me obriguem a ser desagradável convosco, disse-lhes Toddy com firmeza na voz.
Entre apavorados e desconcertados, retiraram-se ambos rapidamente, garantindo a Toddy que aquilo não iria passar impune.
Quando o portão eléctrico se fechou pela segunda vez atrás daquele casal, Toddy ajoelhou-se junto de Nancy e acariciando-lhe o focinho e as orelhas aveludadas, disse-lhe cheio de ternura:
- Muito bem Nancy! Estou muito orgulhoso de ti, continuou emquanto lhe passava carinhosamente a mão pelo dorso macio e felpudo. Acredita que não há dinheiro nenhum no mundo que possa comprar uma amizade tão valiosa como a tua! Por isso de hoje em diante, garanto-te que as nossas vidas ficarão para sempre “cãoprometidas”!
Enquanto Toddy ria do trocadilho inventado por ele naquele momento, a linda pastora belga que parecia compreender perfeitamente as suas palavras, cobria-o de delicadas e molhadas lambidelas, pois dentro do seu dedicado coração, também ela há já muitos meses lhe havia secretamente feito a mesma promessa!


Sónia Queirós

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Vidas “Cãoprometidas”! 1ª^parte


Nancy era uma cadela imponente e graciosa! Realmente, nem era para estranhar, pois sendo filha de um belíssimo casal de pastores belgas, daqueles com pedigree e tudo, nasceu dotada de características e qualidades habitualmente raras na sua espécie!
Aliando a beleza do seu pêlo cor de fogo à vivacidade e ternura dos seus expressivos olhos azuis, juntando o bege claro das patas com a brancura da ponta da linda cauda farfalhuda de que dispunha, não havia dia nenhum em que não fosse cumulada de festinhas e atenções, tanto da parte dos donos, como por quaisquer estranhos que com ela se cruzassem na rua ou no jardim da casa onde morava!
Quando por volta dos três meses, o seu dono Toddy a começou a levar à rua de maneira regular, para se ir habituando calmamente a “conviver” com as coisas do mundo exterior, a graciosa pastora belga “dava nas vistas” por todos os lados por onde passava! Para não variar, os comentários eram sempre do género:
“Ai que cãozinho tão amoroso!” “Que engraçado a maneira como caminha sempre junto do dono e obedece às ordens dele, até parece que o entende!” “O ar dele é tão dócil, que quase parece ser de peluche”!
Realmente, a amável pastorinha tinha um ar tão pacífico que com frequência, várias pessoas perguntavam a Toddy se podiam fazer-lhe festas.
- com certeza, a Nancy é uma cadela muito dócil! Fique descansada porque ela é fã de carinhos e beijocas! E então se vierem acompanhadas de um dos seus biscoitos preferidos, aí é que ninguém a segura, dizia ele em alegre tom de brincadeira! É por isso que trago sempre um lenço no bolso, não vá às vezes fazer-me falta para secar as mãos ou o rosto!
Claro que, ao ouvirem tais palavras, os sorrisos dos que com ele conversavam não se faziam esperar.
Como Toddy já tinha bastante experiência no treino de exemplares daquela raça, percebeu logo desde os primeiros dias após o nascimento de Nancy, que ela sem dúvida alguma, possuía qualquer coisa de especial! É que, ao contrário dos dois irmãozinhos que haviam nascido na mesma ninhada que ela e que adoravam passar o tempo a brincar e a dormir, apesar de serem dóceis e inteligentes, não podia dizer-se de forma alguma que possuíssem capacidades de compreensão e aprendizagem semelhantes às dela.
Um dos factos que desde muito cedo o levou a pensar dessa maneira a respeito de Nancy, foi o desembaraço por ela demonstrado para resolver situações incómodas. Esse era por exemplo o caso, de quando por uma razão qualquer, ele se esquecia de encher-lhe o bebedouro de água limpa. Ora se por acaso Nancy sentia sede, não se atrapalhava muito a pensar nas falhas do dono! Pelo contrário, sem mais hesitações, pegava nele com os dentes e levava-o até junto dele. Depois, pousava-o gentilmente no chão e olhava para ele com ar de quem diz:
- Olha Toddy estou com muita sede, não te importas de me pôr aqui por gentileza, um bocado de água fresca para eu molhar a garganta?
Nas primeiras vezes em que isso aconteceu, ele ficou boquiaberto com a desenvoltura dela, mas depois com um sorriso de enorme satisfação nos lábios, tratou logo de lho lavar e de o encher. A seguir, pediu-lhe desculpas com toda a sinceridade pela falta cometida, enquanto lhe afagava cheio de ternura e admiração, as orelhas e o delicado focinho. Ela por seu turno, correspondia a esses gestos e palavras, com significativos olhares de meiguice e doces lambidelas no seu rosto!
À medida que a linda pastora belga ia crescendo, Toddy sentia-se cada vez mais cativado pelos seus encantos e capacidades. Para sua grande satisfação, sempre que se dirigiam para a zona de treinos, ela caminhava invariavelmente, cheia de energia e boa disposição. Logo que as aulas começavam, punha-se a olhar muito atenta para o rosto do treinador e a uma palavra sua, sentava-se, deitava-se, levantava-se, estendia amavelmente uma das patas em direcção à mão aberta dele ou rolava sobre si mesma.
Depois de ter aprendido as instruções básicas, Nancy evoluiu para níveis de maior exigência e dificuldade. Na primeira fase dos novos treinos, teve aulas de ataque e defesa e, depressa se tornou capaz de identificar quais as situações em que teria que ser rápida a neutralizar um agressor, para impedir quaisquer tipos de conflitos físicos. A seguir, Toddy ensinou-a a subir degraus de escadas que colocava à sua frente, a saltar por cima de obstáculos com diferentes graus de dificuldade e a passar pelo meio de um círculo de fogo, veloz como uma flecha!
Realmente, Nancy era uma cadela bastante invulgar, pois quase sempre percebia ao primeiro estalar de dedos, a um simples erguer do indicador de Toddy em certa direcção, qual a mensagem que queria transmitir-lhe e, esforçava-se invariavelmente por corresponder às suas ordens da melhor maneira que conseguia! Aliás, depois de terminar de fazer o que o treinador mandara, voltava novamente para junto dele e aguardava de focinho bem erguido e de cauda oscilante, umas festinhas de recompensa pelo bom desempenho da sua tarefa.
Ele por sua vez, não se fazia rogado e acariciava-lhe ternamente o dorso e as orelhas macias. A seguir, Nancy sentava-se ou deitava-se de patas estendidas e com a cabeça no meio delas num sítio qualquer de onde o pudesse ver sem dificuldades e ficava tranquilamente a vê-lo treinar também os pais e os irmãos. Com certa regularidade, iam pessoas à propriedade onde eles moravam para observarem os treinos e as capacidades dos cães e, quase sempre, acabavam por adquirir um dos que estivesse mais bem preparado. Apesar de Nancy se esforçar por se manter calma naqueles momentos, quase sempre era traída por um pensamento que lhe percorria o coração e que a fazia tremer da ponta do focinho à extremidade da cauda:
- E agora, será que é desta vez que vou ter que deixar Toddy? Espero que não gostem nada de mim e que me achem uma cadela muito feia e horrorosa!
Verdade seja dita, não era à toa que Nancy sentia tais medos, pois os seus dois irmãos já haviam partido há muito tempo e ela nada tinha podido fazer para impedir que isso sucedesse.
Ora certo dia, foi um senhor com sua esposa visitar a propriedade de Toddy e quando viram a imponente pastora belga, ficaram completamente fascinados por ela. Gostaram tanto dela, que lhe ofereceram imediatamente uma quantia muito superior ao preço que no início da conversa ele lhes havia pedido, para a poderem levar logo com eles.
Contudo, surgiu um imprevisto para o qual Toddy não estava nada preparado! Durante uma fracção de segundos, ao imaginar a partida de Nancy o coração quase lhe caiu aos pés e, foi com grande dificuldade que limpou duas lágrimas teimosas que começaram a deslizar-lhe pelo rosto abaixo.
Nancy também pareceu sentir a mesma dor, pois no momento em que Toddy tirou o lenço do bolso, ela colocou-lhe imediatamente as patas dianteiras no abdómen e olhou-o com um ar no qual se liam, uma imensa tristeza e ansiedade.
- Meu querido Toddy, dono, por favor não me mandes embora, porque eu só gosto de ti, não deixes que nos separem!...
Sem qualquer hesitação, o sensível treinador tratou prontamente de a sossegar, pois até julgou ver-lhe duas lágrimas que lhe escorriam pelos cantos dos olhos. A seguir, imprimindo à voz a maior convicção que lhe foi possível, disse ao casal visitante, que aquela cadela ainda precisava de mais algum tempo de treino para atingir o pico das suas capacidades e inventou que ela também estava a fazer uma medicação regular, razão pela qual naquela altura precisava de ficar com ele ainda por mais alguns meses.
Como haviam ficado sinceramente conquistados pela encantadora Nancy, prometeram que daí a três meses, voltariam sem falta e que nessa altura, fechariam o negócio sem mais discussões. Depois foram-se embora, sem mais nenhuma palavra. Logo que o portão eléctrico da casa se fechou atrás do descapotável brilhante que os transportava, a tranquilidade voltou novamente àquele local.
À noite, depois do jantar, confortavelmente sentado no sofá junto da esposa e dos dois filhos que brincavam com Nancy, Toddy revia na mente, o episódio acontecido na tarde daquele dia. Mais uma vez, deu consigo a pensar que, parecia que a cadela lhe adivinhava os pensamentos, pois frequentemente sem ele dizer o que quer que fosse, ela sabia perfeitamente se ele estava ansioso e apreensivo por algum motivo ou se pelo contrário, se sentia alegre e bem disposto com as circunstâncias da vida dele.
Os dias foram-se passando e Toddy acabou por esquecer-se daqueles momentos tão complexos. Além disso, numa certa manhã de Primavera, a esposa chegou a correr ao local onde estava a treinar Nancy e disse-lhe:
- Amor, trago notícias excelentes para ti. Vais ser pai novamente e agora são gémeos.
Quando ouviu as novidades Toddy nem cabia em si de contente! Depois de a abraçar e beijar, acariciou também a cabeça e as orelhas de Nancy que entretanto, se lhes tinha ido juntar também.

Como a família estava prestes a crescer, Toddy necessitou de consultar os serviços de uma empresa imobiliária. E foi o que fez alguns dias mais tarde, acompanhado pela esposa e pela sua inseparável companheira de quatro patas. Mas, depois de terminar a entrevista com o Dr. Silvano que era o gerente dessa firma, surgiu um imprevisto que poderia ter causado grandes transtornos a Toddy se não fossem a sagacidade e a perspicácia de Nancy.


(Caontinua)