domingo, 21 de agosto de 2011

O Sonho Secreto!!






O ambiente era de grande festa e alegria. Sentado numa das cadeiras do anfiteatro do novo estabelecimento de ensino onde era professor, junto de outros colegas também docentes, Louis ouvia com imensa satisfação as ruidosas chuvas de aplausos que ecoavam por toda a sala, aquando do fim de cada número artístico apresentado. Num envolvente clima de cor e magia, professores e alunos colaboravam para mostrar perante um público atento e curioso, as maravilhas que o talento, a boa-vontade e o empenho comum conseguem alcançar.
À medida que os ponteiros do relógio iam avançando no seu caminho, traziam consigo momentos de poesia, de música, de teatro e de ginástica realizados na sua grande maioria, por crianças e jovens cegos ou com baixa visão. De facto, a alegria, o talento e a capacidade de todos aqueles artistas desconhecidos, eram nada mais, nada menos do que surpreendentes!
Como era natural, tudo havia sido preparado com todo o esmero e atenção até ao mais pequeno pormenor! No ar sentia-se um grande desejo de que nada falhasse, pois ali estavam inúmeras horas de ensaios e de testes, de ajustes e reajustes. Além disso, naquela sessão solene de inauguração, encontravam-se presentes algumas das figuras mais ilustres da sociedade francesa, como era o caso de políticos, diplomatas, escritores e jornalistas, médicos e arquitectos.
A festa estava a correr lindamente e tudo a acontecer segundo os planos previstos, o que deixava o professor Louis muitíssimo satisfeito. No entanto, desde o momento em que um jovem músico que era seu aluno, começou a tocar o piano, algo de estranho sucedeu com ele. Sem que soubesse muito bem porquê, logo ao soar das primeiras notas da melodia, Louis sentiu-se transportado para muito longe daquele sítio.
Subitamente, reviu-se como criança e lembrou-se de alguns dos momentos mais dolorosos pelos quais havia passado na infância quando devido a um acidente, tinha perdido a visão. Com o peito apertado, recordou por instantes, a maneira como os pais tinham ficado tristes naqueles momentos de incerteza e angústia!
Contudo, para grande alívio seu, essas lembranças tristes do passado, foram rapidamente substituídas pelas da altura em que teve a alegria de conhecer o abade Paluy, na primeira vez em que ele foi a sua casa. Vieram-lhe então à memória, as muitas coisas que aprendeu com ele e os belos passeios que tantas vezes tinham dado juntos ao ar livre, pelas florestas e campos da aldeia! Mas, sobretudo, recordou com sincero apreço, o momento de grande felicidade que sentiu, quando ele o informou de que tinha conseguido convencer o novo professor da escola primária da aldeia a aceitá-lo como aluno na sua classe. Que maravilha!
Sempre que por alguma razão retornava a esses momentos felizes, até lhe parecia que ouvia novamente, as palavras de incentivo que os pais então lhe haviam dito:
- Louis, agora vais poder aprender várias coisas novas que hão-de ser muito importantes para o teu futuro. Temos a certeza de que és um menino muito inteligente e com capacidade, por isso certamente vais conseguir acompanhar as lições do senhor professor e fazer todos os exercícios que ele mandar.
Como o futuro mais tarde veio a confirmar, os pais tinham toda a razão em falar-lhe daquela maneira tão confiante, pois com o professor Antoine Becheret teve aulas sobre as mais variadas matérias e concluiu com óptimos resultados a frequência da escola primária. Na verdade, Louis sentia uma imensa gratidão por aquele homem que marcara para sempre a sua vida, ao mostrar que acreditava na importância de ensinar um menino cego, o que naquela altura era uma coisa bastante invulgar. Aliás, ainda guardava bem vivas no pensamento, as palavras que o senhor professor tinha dirigido aos meninos da classe, no seu primeiro dia de aulas:
- Não sei se vocês já se conhecem todos uns aos outros. Temos aqui connosco, um aluno que não vê e que por essa razão, vai precisar de um acompanhamento diferente do vosso. Pela minha parte, eu ficarei muito contente se todos os colegas colaborarem com o Louis, para que ele também aprenda as matérias leccionadas tal e qual como vocês. E foi o que de facto aconteceu!
Entretanto, o piano parou de tocar e o som dos aplausos encheu por completo o anfiteatro, o que fez com que o professor Louis voltasse ao momento presente. Nos seus lábios surgiu um bonito sorriso, mas lá no fundo do seu coração, nem ele sabia muito bem dizer se era devido ao êxito retumbante ali alcançado pelo seu aluno, ou se era de reconhecimento por tudo o que tinha aprendido com o seu saudoso mestre-escola.
A seguir, foi a vez de um dos alunos de um dos seus grandes amigos do Instituto, declamar uma poesia que ele próprio fizera, acerca do valor da fraternidade e da amizade. Mal começou a ouvir as primeiras palavras que melodiosamente saíam dos lábios do jovem poeta, de novo o pensamento se lhe “escapou” para bem longe dali!
Na segunda vez, as lembranças “levaram-no até um dia já muito distante, em que foi ter com o seu amigo Palluy à sacristia da igreja de Saint-Pierre, para falar-lhe sobre as suas angústias e preocupações. Contou-lhe que se sentia muito triste por não saber como iria ser o seu futuro, uma vez que não poderia aprender a profissão de correeiro do pai.
Como sempre acontecia, o abade Palluy ouviu-o com toda a atenção. A seguir, prometeu-lhe que o iria ajudar a encontrar uma maneira para resolverem os problemas dele, tarefa na qual se empenhou de alma e coração.
Alguns meses depois daquela conversa, para grande surpresa do menino, numa certa tarde pouco depois do almoço, o abade Palluy chegou a correr eufórico à arrecadação onde ele estava a cortar lenha, pois trazia uma notícia absolutamente maravilhosa para dar-lhe!
- Louis, Louis, disse-lhe ele cheio de alegria logo que o viu, tenho novidades excelentes para ti! Já arranjei uma solução para o teu problema!
- Ah, sim senhor abade e como foi que fez isso, perguntou Louis enquanto lhe apertava amavelmente a mão.
- Depois da conversa que tivemos os dois na sacristia, falei com o professor Antoine Becheret sobre as questões que me tinhas apresentado e ele informou-me de que sabia da existência de uma escola criada para crianças cegas em Paris. A seguir, fui ter com uma pessoa muito importante daqui da aldeia, o marquês “d*Orvillier”, que me disse que também já tinha ouvido falar dessa escola e consegui que por intermédio dele, tu fosses admitido como aluno no Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, o primeiro estabelecimento de ensino do mundo para cegos!
Ao princípio, Louis ficou boquiaberto com aquilo que ouvia da boca do seu amigo Palluy. Mas aos poucos, o seu espanto inicial foi sendo substituído por uma imensa onda de alegria interior. Sem que ele o esperasse, o abade Palluy cobriu dois troncos de madeira com uns quantos sacos de sarapilheira para lhes servirem de almofadas e, depois de estarem ambos confortavelmente instalados nas suas “poltronas improvisadas”, começou a ler-lhe uma carta recém-chegada vinda de Paris.
Quando o abade Palluy terminou a sua leitura, dobrou cuidadosamente as folhas e meteu-as no envelope, que em seguida colocou no bolso e depois disse ao pequeno:
- Agora, vamos ambos contar estas notícias maravilhosas aos teus pais, explicar-lhes que essa escola tem como principal objectivo dar uma boa instrução a crianças cegas e proporcionar-lhes uma actividade profissional útil. Ah, e pedir-lhes a sua autorização para que possas ir realmente frequentá-la, pois isso vai ser óptimo para ti!
Quando os pais de Louis souberam que o filho tinha ganho uma bolsa para ir frequentar um estabelecimento de ensino tão importante como aquele, ficaram radiantes. E, a alegria deles tornou-se ainda maior quando o sacerdote Palluy os informou de que no Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, Louis iria ter disciplinas para desenvolver a actividade intelectual, musical e profissional.
Depois Louis teve por momentos, a sensação de sentir novamente o abraço apertado que lhe havia dado o seu amigo incondicional, quando a meio dessa tarde se despediram já na porta da rua, enquanto lhe desejava as maiores felicidades para o novo desafio que o aguardava e lhe prometia que todos os dias, rezaria por ele junto do Santíssimo Sacramento.
Contudo, como imprevistos acontecem a qualquer pessoa e principalmente às mais distraídas, a certa altura, um dos colegas de Louis que se havia ausentado durante algum tempo da festa, interrompeu-lhe o fio dos pensamentos, ao perguntar-lhe se os alunos já tinham começado a ler as composições escritas por eles acerca do Instituto. Mas, ele estava tão entretido com as suas lembranças da infância, que lhe respondeu muito naturalmente:
- Não sei senhor abade, realmente não prestei lá grande atenção a esse facto, mas espere um bocadinho que já veremos...
O colega olhou-o espantado e pensou por momentos: Senhor abade?... Ah, isto não é normal no Louis, de certeza que está a confundir-me com outra pessoa qualquer... E, pelo sim pelo não, resolveu fazer a pergunta a um outro colega menos distraído, para evitar mais situações embaraçosas...
Entretanto, poucos segundos após este incidente, Louis apercebeu-se do seu engano e apressou-se a pedir desculpas ao colega pelo lapso cometido. Felizmente para ele, alguns minutos depois, foi anunciada a leitura das tais redacções feitas por alunos do Instituto.
A primeira aluna a subir ao palco para ler a sua composição foi Simone, uma bonita menina de longos cabelos negros ondulados. Logo desde as primeiras palavras que ouviu, Louis sentiu-se profundamente identificado com as ideias por ela ali expostas. De repente, começou a rever-se na altura em que com dez anos apenas, tinha entrado para aquele Instituto, situado na Rua “Saint-Victor, nº 68”, que naquele tempo era dirigido pelo Dr. “Sébastien Guillié”.
Avançando de lembrança em lembrança, recordou-se então de que aquele havia sido o momento em que pela primeira vez na vida, tinha tido que ficar a viver afastado da família de quem tanto gostava, rodeado por pessoas desconhecidas e num sítio totalmente novo para ele. É certo que de vez em quando, recebia cartas que lhe eram enviadas tanto pela família como por amigos, o que lhe enchia o coração de alegria e o ajudava a ultrapassar os momentos de solidão.
Mas ainda assim, nos primeiros meses as coisas não haviam sido nada fáceis e tinha sido só com o passar dos dias que se havia indo acostumado à companhia dos outros meninos e meninas que também ali estudavam... É que, o Instituto ficava muito longe de Coupvray, a aldeia onde ele nascera e por isso, só podia ir a casa na altura das férias de Natal e de Verão.
Simone prosseguia a leitura da sua composição, contando em voz suave e clara: “nas primeiras semanas depois da minha entrada no Instituto, existiram dias em que senti tantas saudades de casa que em certos momentos, as lágrimas se me tornaram difíceis de segurar. Nessas ocasiões de tristeza, se tinha oportunidade para isso, refugiava-me durante um bocadinho no dormitório e, com a minha boneca querida bem apertada contra o coração, pensava na doce ternura das palavras da minha mãe adorada!”
Confortavelmente sentado na sua cadeira da plateia, Louis ia pensando de si para consigo: Meu Deus, como o caso dela é parecido com o meu! Quantas vezes eu mesmo, chorei com o meu estojo de letras em cabedal feitas pelo meu pai, estreitado contra o peito, ao recordar as últimas palavras que ele me disse quando me deixou aqui em Paris:
- Meu filho, tens de ser forte pois espera-te uma etapa decisiva para o teu futuro! Aqui vais aprender muitas coisas novas que hão-de ser de grande utilidade para a tua vida! Mas, não te esqueças que todos gostamos imenso de ti e que estás sempre nos nossos corações! Boa sorte, meu querido filho e faz por seres um homem! Assim que chegarem as férias grandes, eu venho logo cá buscar-te para ires para junto de nós, está bem?...
Nos parágrafos seguintes do seu trabalho, Simone falava de maneira entusiasmada dos vários livros que haviam lá no Instituto, sobre assuntos muito variados, com as letras propositadamente feitas em alto relevo para serem sentidas pelos dedos. A seguir, explicava que essa tinha sido uma descoberta fantástica para ela, pois servindo-se do tacto, podia ler sozinha e à sua vontade acerca de todos os assuntos que quisesse!
Depois mencionava as aulas de música, de trabalhos manuais, os mapas feitos com materiais adequados para serem palpados, nos quais se podia identificar com todo o rigor, a localização dos rios, das montanhas e dos desertos em diferentes países.
Por fim, num último parágrafo breve, mas muito significativo, a menina agradecia ao fundador do Instituto, ao director, aos professores e aos seus benfeitores por lhe terem proporcionado a ela e a todos os outros alunos, oportunidades tão valiosas de adquirirem capacidades e talentos tão diversos.
Quando Simone acabou, uma imensa chuva de aplausos encheu por completo o salão nobre, o que fez com que o professor Louis “regressasse” novamente aquela celebração tão especial!
A festa prosseguiu com a a entrega das mençãos honrosas. A primeira pessoa a ser chamada ao palco pelo director do Instituto, o Dr. Dufau, para receber uma homenagem, foi um familiar directo do Dr. Valentin Hauy, que havia sido o nobre fundador do Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris em 1784.
A distinção seguinte, foi entregue a um senhor de aspecto muito elegante, de nome Charles Barbier de la Serre, que era um ex-capitão do exército francês e um dos grandes benfeitores do Instituto. Segundo o que o Sr. Director leu em voz alta, ele tinha inventado um método de leitura e escrita para comunicar com os seus homens quando estavam na frente de batalha, ao qual dera o nome de “escrita nocturna” ou Sonografia, formado por traços e pontos em relevo, que podiam ser lidos sem luz e com o auxílio dos dedos.
Entre o som dos aplausos que enchiam a sala e as palavras emocionadas de agradecimento do Sr. Capitão, Louis recordou por momentos, a alegria e o interesse com que os alunos do Instituto, tinham experimentado aquele método de comunicação tão inovador. Na verdade, quase todos haviam percebido que aquele sistema, tinha vantagens que o método dos caracteres em relevo usado regularmente lá na escola não reunia, uma vez que permitia tanto a leitura, como a escrita, o que era um avanço fabuloso!
Realmente, à medida que os anos de estudo no Instituto foram passando, Louis foi começando a aperceber-se de que os livros ali usados com letras em alto relevo, permitiam a leitura, mas não a escrita, o que era uma limitação muito séria. Em relação aos mapas de estudo e às pautas musicais indispensáveis para a execução correcta dos instrumentos tocados, o problema era o mesmo, porque com o método de escrita utilizado, os alunos podiam ler facilmente as notas musicais, mas se quisessem ser eles mesmos a compor as pautas das músicas que tocavam, isso era-lhes impossível.
Outra das dificuldades experimentadas, surgia quando eram ensinados a escrever pelo seu próprio punho o seu nome completo, as letras do alfabeto e o mais que necessitassem para redigirem, por exemplo, cartas aos amigos e à família, uma vez que depois do trabalho terminado, não tinham como verificar se tudo estava bem escrito ou se precisavam de corrigir alguma coisa.
Após ter compreendido tudo isso, aos poucos Louis começou a desenvolver no seu coração um sonho secreto: desejava ardentemente, criar um sistema de leitura e escrita que permitisse a qualquer pessoa cega, ler e escrever tudo aquilo de que necessitasse de maneira independente.
Contudo, como naquela altura não dispunha nem de conhecimentos, nem de meios que lhe permitissem realizar o seu plano, não lhe restava outra solução senão a de continuar a usar o método dos caracteres em alto relevo. Mas um dia, depois de ter tomado contacto com o sistema do Capitão Barbier, aos poucos começou a achar que a realização do seu sonho iria tornar-se possível!
Realmente, ao cabo de três anos de muito trabalho e afinco, depois de incontáveis tentativas de erros e acertos, pôde finalmente mostrar ao director do Instituto onde estudava, o Dr. Pignier, a sua invenção mais recente, à qual havia dado o nome de “Processo”.
Ora, estando o amável professor profundamente embrenhado nestas gloriosas lembranças da juventude, de repente e sem que nada lho fizesse prever, começou a ter a impressão de que ouvia o seu nome a ser chamado para ir ao palco. Apanhado pelo efeito de surpresa, ao princípio nem queria acreditar no que escutava.
Mas as dúvidas dissiparam-se, quando o seu amigo e colega muito querido Michel Martins, se aproximou dele e gentilmente se ofereceu para o conduzir até lá em segurança. Já com o pé no último degrau e com o som das palmas a ecoarem-lhe nos ouvidos, ainda se perguntava acerca das razões pelas quais alguém se teria lembrado dele naquela celebração tão especial...
Entretanto, num curto instante de tempo, tudo se tornou muito claro para o professor Louis! Logo que chegou junto da tribuna de honra, aproximou-se dele o chefe de ensino do Instituto, o senhor Joseph Guadet, que lhe apertou cordialmente a mão e o conduziu até uma cadeira onde se acomodou confortavelmente. Depois deu início à leitura de um discurso formal em sua honra, o que o fez sentir-se muito elogiado e que começava da maneira seguinte:
- Caros senhores e senhoras, permitam-me que lhes diga que Paris e Coupvray estão hoje de parabéns, pois é graças ao talento e génio criativo do professor Louis Braille, que se deve a invenção do sistema de escrita e leitura aqui utilizado por todos os participantes desta festa maravilhosa. É ele o responsável pela criação deste método de comunicação, simples e eficaz, formado por pontos em relevo e pensado propositadamente para ser usado por pessoas cegas, como agora viram acontecer. Por essa e por muitas outras razões, cumpre-me pois declarar perante Vossas Excelências, que o Instituto Real dos Jovens Cegos de Paris, ficará com uma eterna dívida de gratidão para com este bondoso e insigne representante da cultura e do povo francês.
Quando o senhor Joseph Guadet terminou a leitura do discurso proferido em homenagem ao Professor Louis Braille, ele agradeceu comovido, pela menção honrosa que publicamente acabava de ser-lhe entregue! De regresso ao seu lugar, entre ruidosos vivas e calorosos apertos de mão, tanto de colegas, como de alunos, ia pensando como tinha valido a pena trabalhar com persistência e afinco, na realização do seu sonho secreto!


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