terça-feira, 2 de agosto de 2011

Vidas "Cãoprometidas"! 2ª parte

Continuação do post anterior.




O problema surgiu na altura em que arrumou os papéis dentro da mala, pois sem dar por isso, deixou esquecida em cima da secretária do gerente da imobiliária, a escritura que comprovava que ele era o dono da propriedade e da casa onde morava. Mas como era um homem pouco amigo de burocracias, logo que chegaram a casa, guardou a mala dos documentos no escritório e não pensou em mais nada do que tinham conversado com o Dr. Silvano naquela tarde.
Contudo alguns dias depois ao ler com atenção o conteúdo dos papeis que guardava na mala, verificou que lhe faltava a sua escritura. A aflição e ansiedade que de imediato se lhe instalaram na alma eram indizíveis!
- Meu Deus, mas aonde é que eu meti a porcaria da escritura? Oh, que sorte maldita a minha... Olha, o que me havia de acontecer! E agora, o que é que vou fazer para resolver esta chatice?
No meio do desespero e da aflição começou a atirar com tudo e acabou por perder de tal maneira a presença de espírito que entre rogos e pragas, foi sentar-se profundamente abatido no sofá.
Ao ouvir tal agitação dentro do escritório, Nancy veio logo a correr não se sabe de onde, na direcção do dono. Uma vez junto dele, colocou-lhe as patas dianteiras nos joelhos como sempre fazia em alturas de crise e olhou-o com a ternura habitual. Depois de o ter fitado durante alguns momentos enquanto abanava docemente a sua linda cauda, ele fez-lhe umas festinhas e disse-lhe:
- Não te preocupes Nancy, porque já estou a ficar mais calmo. Fica tranquila que está tudo bem... A seguir pensou melhor e corrigiu o que tinha dito antes.
- Sabes, quer dizer, dizia ele enquanto olhava para os papeis espalhados por todo o lado, não está nada bem, porque perdi um documento muito importante. Mas como não sei o que hei-de fazer para resolver o problema, continuou com a voz embargada pelas lágrimas…
Nancy não precisou de ouvir mais nada. Lambeu-lhe o rosto e as mãos ternamente e logo que o sentiu mais sossegado, tirou-lhe as patas dos joelhos e farejou longamente a mala e todos os papeis que por ali haviam completamente desordenados. No início “tomou conhecimento” dos documentos que se encontravam em cima do tampo da secretária e depois olhou atentamente para os que estavam no chão. A seguir, após ter reflectido durante uns momentos, olhou novamente para ele, foi até junto dele e agarrou-lhe a manga do polouver.
Ao princípio Toddy nem queria acreditar no comportamento de Nancy e, julgando que ela queria brincar para o distrair das suas aflições, exclamou com certa impaciência:
- Não Nancy, agora não vamos brincar! Já te disse que hoje estou muito preocupado, por isso se fazes favor, ficas aí quietinha… Dito isto, retirou-lhe a manga da boca, de maneira delicada mas firme.
Mas para grande surpresa dele, a inteligente pastora belga continuou a insistir decidida nos seus propósitos. Assim abocanhou-lhe novamente a manga e começou a puxá-lo para que se erguesse do sofá.
Após a ter fitado longamente durante algum tempo, começou a pensar de si para consigo: “será que ela quer que eu a acompanhe a algum lado?” “O que quererá ela dizer-me ao agir desta maneira tão estranha?...”
Habituado como estava, a confiar nas capacidades raras de compreensão de Nancy e também porque bem vistas as coisas, não tinha nada a perder em fazer o que ela queria, lá aceitou levantar-se e segui-la.
Em poucos minutos, Nancy percorreu o corredor central da casa e dirigiu-se para a porta da saída. Uma vez no exterior, caminhou sem hesitações para a porta da garagem e ladrou duas ou três vezes diante dela.
Absolutamente boquiaberto com o comportamento dela, Toddy perguntou-lhe:
- Queres que tire o carro, é isso?
A expressão viva no olhar de Nancy não deixava margem para dúvidas. Por isso, alguns momentos depois, já estavam ambos prestes a entrar para a rua que ficava em frente da casa onde moravam.
- E agora Nancy, vamos para a direita ou para a esquerda?
Nancy ladrou decidida duas vezes, o que queria dizer para a direita.
Sem mais hesitações Toddy ligou o pisca e quando chegou a sua vez, fez-se à estrada como a pastora belga recomendava. Por breves momentos, recordou-se das alturas em que treinavam os sinais de orientação e busca, num dos bosques próximos lá de casa.
Ao cabo de uns vinte minutos de latidos que indicavam ora para a direita, ora para a esquerda ou em frente, o perspicaz treinador começou a perceber a direcção que Nancy pretendia seguir. Alguns quilómetros mais adiante, perguntou-lhe numa voz um tanto surpreendida:
- Vamos à empresa imobiliária falar com o Dr. Silvano, é isso?
Após o ter fitado com sincera vivacidade, ladrou duas vezes e esticou-se na direcção do dono e lambeu-lhe o rosto como pôde, uma vez que o cinto de segurança que ele lhe tinha colocado logo que entraram no automóvel, lhe restringia bastante os movimentos.
- É isso Nancy, pode ser que tenhas razão! Se estiveres certa nas tuas intuições, dou-te o melhor presente da tua vida!
Quando parou o carro no parque da empresa, Toddy estava já absolutamente convencido de que era possível que o seu tão valioso documento lá tivesse ficado esquecido. Assim, ao cabo de alguns minutos de espera, estavam ambos novamente no escritório da firma, a conversar com o Dr. Silvano e Toddy informou-o dos motivos pelos quais ali se dirigiu. Mal ele acabou de falar, o Dr. Silvano disse-lhe com uma voz calma:
- Espere um minuto Sr. Toddy, porque realmente tenho uma ideia de ter visto essa escritura por aqui, mas creio que a minha secretária a encontrou e a guardou no cofre principal da firma. Só um bocadinho que eu venho já. Dito isto, ergueu-se prontamente e saiu do escritório.
Depois de uns dez minutos de espera que a Toddy mais pareceram dez horas, voltou com um ar sorridente que iluminava de forma indelével a sua fisionomia ainda jovem E exclamou:
- Ora pronto, é como eu lhe tinha dito. Aqui está a sua escritura senhor Toddy, disse ele assim que se sentou, estendendo-lhe logo o valiosíssimo documento. Peço-lhe imensa desculpa por não ter ligado logo para a sua casa a informá-lo de que a tinha deixado cá, mas só me apercebi disso no fim do trabalho quando fui colocar em ordem os papeis daquele dia. Além disso, como a Patrícia a guardou, não a voltei mais a ver e acabei por me esquecer também.
Toddy nem queria acreditar! Ali estava mesmo à frente dos seus olhos, a escritura que era tão importante para ele e da qual Nancy, (vá-se lá saber por que razões), realmente não se havia esquecido!
- Ah Dr. Silvano, não faz mal, fique tranquilo que eu compreendo perfeitamente como essas coisas são, disse delicadamente o treinador enquanto se preparava para erguer-se. Já de pé, estendeu-lhe a mão cordialmente. A seguir olhou para Nancy que ao vê-lo pôr-se de pé fez o mesmo e disse-lhe em tom afectuoso:
- Vamos Nancy, dá a pata ao Dr. Silvano, ordem a que ela obedeceu prontamente.
Com um sorriso nos lábios, o Dr. Silvano apertou-lhe delicadamente a pata dianteira direita, enquanto lhe fazia umas quantas carícias na cabeça e orelhas.
Quando saíram das instalações da empresa imobiliária, Toddy nem cabia em si de contente. De facto, essa foi mais uma das vezes em que as capacidades absolutamente raras da sua querida Nancy, lhe foram muitíssimo preciosas!
Radiante de satisfação, nessa tarde foram ambos passear no parque principal da cidade, onde Nancy pôde correr livremente por onde lhe apeteceu e no regresso a casa, comprou-lhe um sculento osso de búfalo que ela roeu com imenso agrado durante todo o caminho. Além disso, de vez em quando lembrava-se de quanto ela o tinha ajudado e como recompensa, fazia-lhe muitas festas e brincava com as suas orelhas macias.
Contudo, ao chegarem ao portão de casa algo de inesperado aconteceu. Toddy reparou num grande automóvel estacionado muito perto dele e, pensando que poderia ser um possível cliente, logo que o abriu fez sinal aos seus ocupantes para que o seguissem.
Sem que se soubesse muito bem porque razão, Nancy começou a ficar com o pêlo eriçado e parou logo de saborear o seu tão apetitoso petisco. Mal Toddy parou o carro junto da garagem, foi ao encontro deles o casal que há alguns meses atrás tinha querido adquirir Nancy.
Como era de esperar, a inteligente pastora reconheceu-os logo à entrada do portão e entre gemidos e rosnadelas, optou por se esconder por detrás das pernas do treinador.
Compreendendo perfeitamente os motivos de Nancy para se comportar daquela maneira, fez-lhe muitas festas para a tranquilizar. Depois, em tom de grande cordialidade, explicou ao casal que, por razões pessoais tinha mudado de ideias e que afinal já não iria vender aquela cadela.
Ao contrário do que ele desejava, eles não gostaram nada da ideia e ficaram tão furiosos que começaram a protestar. A certa altura, a discussão agravou-se de tal modo que o elemento masculino do casal tentou agredir Toddy com um soco na face. Nancy nem hesitou! De um salto, lançou-se-lhe com tal agilidade à mão erguida na direcção dele que o homem deu um terrível grito de dor.
- Calma Nancy, larga, larga, ordenou-lhe prontamente o treinador.
Nancy obedeceu, mas ficou a rosnar baixinho e não deixou de fitar o agressor um momento que fosse! Não confiava nada nele e bastava que fizesse um movimento em falso para que ela lhe mostrasse o quanto gostava de Toddy!
- Senhores, queiram por favor deixar a nossa casa imediatamente, pois como vêem não temos mais nada para conversar. Não me obriguem a ser desagradável convosco, disse-lhes Toddy com firmeza na voz.
Entre apavorados e desconcertados, retiraram-se ambos rapidamente, garantindo a Toddy que aquilo não iria passar impune.
Quando o portão eléctrico se fechou pela segunda vez atrás daquele casal, Toddy ajoelhou-se junto de Nancy e acariciando-lhe o focinho e as orelhas aveludadas, disse-lhe cheio de ternura:
- Muito bem Nancy! Estou muito orgulhoso de ti, continuou emquanto lhe passava carinhosamente a mão pelo dorso macio e felpudo. Acredita que não há dinheiro nenhum no mundo que possa comprar uma amizade tão valiosa como a tua! Por isso de hoje em diante, garanto-te que as nossas vidas ficarão para sempre “cãoprometidas”!
Enquanto Toddy ria do trocadilho inventado por ele naquele momento, a linda pastora belga que parecia compreender perfeitamente as suas palavras, cobria-o de delicadas e molhadas lambidelas, pois dentro do seu dedicado coração, também ela há já muitos meses lhe havia secretamente feito a mesma promessa!


Sónia Queirós

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